Juiz cita Bíblia e adultério para suspender penas de agressores de mulher

26/10/2017

Um tribunal do Porto, em Portugal, suspendeu as penas de dois homens condenados por violência doméstica e outros crimes contra uma mulher acusada de adultério, que foi agredida pelo ex-marido com golpes de um bastão com pregos. Na decisão, o juiz Neto de Moura afirma que “na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte” em trecho que justifica a suspensão da pena.

A agressão ocorreu em 2015. Segundo a sentença, o homem que mantinha relação extraconjugal com a vítima se irritou com o término do relacionamento entre os dois se juntou ao marido da mulher, que tinha se separado dela meses antes, para confrontá-la. O primeiro a sequestrou e telefonou para o ex-marido, que utilizou um bastão com pregos para agredi-la no rosto e em outras partes do corpo, causando escoriações e hematomas na vítima.

Os homens foram condenados, mas tiveram suas penas em suspenso. Essa decisão foi confirmada no último dia 11 de outubro pelo desembargador Neto de Moura no Tribunal da Relação do Porto, em sentença assinada também pela juíza Maria Luísa Arantes.

Os juízes justificam que os homens já foram “minimamente inseridos socialmente” e “já terem ultrapassado toda esta situação”. Depois, o texto utiliza o adultério, citando a Bíblia, como atenuante para os crimes.

 
Veja o trecho:

“Este caso está longe de ter a gravidade com que, geralmente, se apresentam os casos de maus tratos no quadro da violência doméstica. Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte.

Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse ato a matasse.

Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.

Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida.”

Juiz já havia chamado ‘mulher adúltera’ de “hipócrita”

Segundo o jornal português “Público”, o juiz Neto de Moura já desconsiderou o depoimento de uma vítima de outro caso de violência doméstica em que atuou como relator por considerá-la ‘adúltera’.

“Uma mulher adúltera é uma pessoa dissimulada, falsa, hipócrita, desleal, que mente, engana, finge. Enfim, carece de probidade moral. Não surpreende que recorra ao embuste, à farsa, à mentira para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos”, escreveu o juiz, segundo o “Público”.

Entidade que defende mulheres convoca protesto

A decisão gerou repúdio e ação de entidades que defendem o direito das mulheres em Portugal. A Umar (União de Mulheres Alternativa e Resposta) disse encarar a sentença “com bastante perplexidade e revolta”. Ela convocou um protesto para o próximo dia 27, às 18h locais, na praça da Filgueira, em Lisboa.

“A fundamentação e a decisão tida pelo coletivo de juízes/as atenta contra os direitos, liberdades e garantias da(s) vítima(s) e, particularmente, contra a dignidade da pessoa humana”, diz a Umar.

“Consideramos inadmissível que depois de tantas evoluções legislativas e de recomendações nacionais e internacionais ainda se continue a legitimar a violência doméstica e a violência contra as mulheres. Para além disso, a evocação à Bíblia ou a outros documentos religiosos não se coadunam com o Estado de Direito em que vivemos, descredibilizando as normas jurídicas impostas. Respeitamos a liberdade religiosa de cada um/a mas tal não é justificativa para se sobrepor ao ordenamento jurídico português”, acrescenta a entidade.

“A violência contra as mulheres, nas suas mais diversas formas, está ainda rodeada de uma ideologia de culpabilização das vítimas, em que a especial relação entre vítimas e agressores funciona, não raras vezes, como agravante e não com especial censurabilidade”, diz a Umar, afirmando que a decisão pode trazer “consequências graves para a sociedade, mulheres e vítimas em geral, levando não só a revitimação das vítimas como à descrença no sistema de justiça o que, obviamente, irá ter repercussões no número de denúncias às autoridades bem como ao empoderamento dos/as agressores/as”.

 

UOL




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