Médica cita riscos do aborto clandestino e jovem lembra: ‘dor que eu nunca tinha sentido’

29/09/2021
Mulher relatou experiência com o aborto clandestino aos 19 anos. Dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina e Caribe, o 28 de setembro reivindica autonomia sobre o próprio corpo e o combate à clandestinidade
Mulher relatou experiência com o aborto clandestino aos 19 anos. Dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina e Caribe, o 28 de setembro reivindica autonomia sobre o próprio corpo e o combate à clandestinidade
Quando Mariana (nome fictício) tinha 19 anos ela engravidou de um ficante. Na época, cursava psicologia em uma faculdade particular de João Pessoa, morava com os pais e não trabalhava. Com entre 4 a 6 semanas interrompeu a gravidez com o uso de um medicamento, na sua casa, sem assistência médica, psicológica ou social. O dia 28 de setembro traz à tona a luta pelo fim da criminalização do aborto em todos os níveis um problema de saúde pública que leva gestantes a situações de clandestinidade e vulnerabilidade.
 
De acordo com a médica ginecologista e obstetra Gilka Paiva, as mortes e as sequelas do abortamento clandestino e da ilegalidade do aborto em todas as esferas são muito maléficas para saúde de mulheres.
 
Conforme a Secretaria de Saúde do Estado (SES), não existem dados de abortos ilegais realizados na Paraíba. Os abortos previstos por lei, hoje acontecem no instituto Cândida Vargas (ICV) e Instituto de Saúde Elpídio de Almeida (ISEA), serviços de gestão municipal de João Pessoa e Campina Grande, respectivamente.
 
Foram 839 mulheres com diagnóstico de abortamento que procuraram o Instituto Cândida Vargas, no período de janeiro de 2020 a julho de 2021, em João Pessoa. Já em Campina Grande e região este número foi de 948 no mesmo período, conforme a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Saúde.
 
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Segundo a Secretaria de Saúde do Estado (SES), o aborto legal na Paraíba é feito conforme a norma de Atenção Humanizada ao abortamento do Ministério da Saúde, que orienta inclusive o tipo de procedimento, podendo ser farmacológico, aspiração manual (AMIU) ou curetagem.
 
Atualmente, o aborto é permitido em três casos no Brasil:
 
 
quando há risco de vida para a mulher;
 
quando a gravidez é decorrente de estupro;
 
quando o feto é anencéfalo.
 
No caso de violência sexual, é feito o registro da situação e, a depender da gravidade, são feitos exames e coleta de possíveis vestígios. Nestes casos, todo atendimento é garantido o sigilo e o respeito à decisão da mulher, conforme a SES. Não é necessário apresentar um Boletim de Ocorrência Policial apesar de ser comum que funcionários de hospitais exijam, para dificultar o processo.
 
Por medo e culpa, Mariana não procurou ajuda médica e conseguiu informações sobre um aborto com amigas e familiares que já tinham passado pela mesma situação. Com essa rede de apoio, ela soube como seria o procedimento e conseguiu um contato para comprar o medicamento abortivo.
 
Custeada por seu parceiro, ela tomou quatro comprimidos em casa e esperou que o remédio fizesse efeito. “A experiência não foi nada positiva”, relembra.
 
Logo depois do feto ser expulso, Mariana não precisou de intervenções médicas, como a curetagem. No mês seguinte, sua menstruação veio de uma forma bastante penosa, com um sangramento muito intenso.
 
Eu senti uma cólica insuportável, insuportável, que parecia que ia quebrar minha coluna. Uma dor que eu nunca tinha sentido na minha vida inteira. Doeu muito, doeu muito, muito, muito, muito”, relata.
 
A médica ginecologista e obstetra Gilka Paiva explica que o abortamento pode acontecer de uma forma sem nenhum prejuízo à saúde da pessoa gestante, quando feito de forma segura e legal.
 
Porém, um processo indevido pode levar a danos sérios como infecções, perfurações, situações que podem gerar perda da capacidade reprodutiva e até levar a uma histerectomia cirurgia para a remoção do útero.
 
Uma complicação comum de abortos caseiros são os sagramentos intensos durante e após o procedimento, que podem ocasionar um choque hemorrágico.
 
Isso acontece muitas vezes quando também a mulher tem o seu sangramento e ela não procura o serviço. Ela esconde não só a gravidez, como também a prática de uso de medicações de forma clandestina, que podem realmente levar a um sangramento volumoso e acaba nesse processo hemorrágico ela perdendo a vida sem buscar ajuda”, disse a médica.
                                
 

Resistência médica e problema de saúde pública

 
Com experiência de 14 anos no Cândida Vargas, centro de referência ao aborto em João Pessoa, Gilka relata que eram frequentes casos de pessoas que procuravam o hospital já em situação de sangramento.
 
Com uma assistência adequada, a pessoa gestante é acompanhada em nível hospitalar, com orientação médica, onde são avaliados os riscos e os cuidados para evitar uma evolução negativa do aborto.
 
Quando isso acontece em nível hospitalar, esse sangramento do tipo hemorrágico em função de um aborto, ela tem uma assistência para coibir essa hemorragia e cuidar dessa mulher. Então, novamente, na ilegalidade, a mulher fica exposta realmente a não ter esses cuidados”, explica.
 
Em sua experiência, abortos ilegais são feitos muito em parte por desespero e falta de opção. É uma situação de vulnerabilidade que acaba comprometendo a saúde física e psicológica de quem precisa do serviço.
 
Além disso, muitas pessoas estão em situação onde têm direito ao aborto legal, mas não sabem. A dificuldade para acessar serviços legais também pode levar gestantes à clandestinidade.
 
Ao se encontrar presente nessas situações, é dever do profissional de saúde informar e garantir o encaminhamento para um dos centros de referência do estado.
 
Porém, outro impasse na luta pela garantia de um direito definido por lei é a resistência média em oferecer assistência e até realizar um aborto legal. Segundo a médica: “existe uma obrigação legal desses centros de referência de fazerem assistência ao aborto legal. Então, se eu faço parte desse centro e me sinto impedido por questões pessoais de fazer essa assistência, eu tenho que indicar alguém do serviço que preste. (...) Isso é indiscutível."
 
 

Acesso ao aborto legal

 
Conforme a historiadora Dayane Nascimento, a garantia do direito à interrupção da gravidez em casos de estupro e/ou com risco de vida para a mãe data de 1940, mas foi apenas em 1998 que esse direito foi efetivado na Paraíba.
 
O estado foi o segundo do Nordeste e o sétimo do Brasil a garantir essa assistência através da criação de uma comissão pró-implantação do serviço de aborto legal na Maternidade Frei Damião, em João Pessoa, encabeçada pela Cunhã Coletivo Feminista.
 
De janeiro a junho de 2020, oito das 78 mulheres vítimas de violência sexual atendidas em um dos três serviços de referência de João Pessoa se submeteram ao aborto legal, segundo o Ministério Público da Paraíba (MPPB).
 
O atendimento no Cândida Vargas, em João Pessoa, funciona 24 horas e é realizado por uma equipe multiprofissional, que vai analisar o caso de quem procurou o aborto legal, seja em casos de violência sexual, gravidez de risco ou feto anencéfalo.
 
G1 PB
 



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